Da cabeça ao caderno
Encaminhar a passagem do cálculo mental para o registro em conta armada é uma das tarefas essenciais na Educação de Jovens e Adultos
Durante uma pesquisa sobre as razões do fracasso escolar em Matemática, alunos do Ensino Fundamental foram sabatinados sobre seus conhecimentos da disciplina. Primeiro, eles passaram por uma prova oral: o entrevistador propunha questões sobre transações realizadas na feira, na barraca de frutas, no carrinho de pipoca etc. Por exemplo: quanto custam seis cocos? Qual é o troco se um freguês lhe dá 20 reais? A moçada se saiu muito bem, acertando 97% dos testes. Mas quando se pedia que resolvessem contas parecidas no caderno... quanta diferença! O índice de respostas corretas caía para 59%. Esses jovens tinham em comum o fato de ser pobres e ajudar os pais em algum negócio próprio.
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Seqüencia didática
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Embora realizado com adolescentes, esse clássico estudo publicado no livro Na Vida, Dez, Na Escola, Zero ilustra bem a realidade da Educação de Jovens e Adultos (EJA): alunos que precisam da Matemática no dia-a-dia fazem muito bem contas "de cabeça", mas têm uma tremenda dificuldade em passar o raciocínio para o papel. Como explicar essa contradição? A professora da Universidade de São Paulo Stela Bertholo Piconez, especialista em EJA, arrisca a resposta: "Cérebro nenhum pede licença para aprender". Isso quer dizer que, independentemente do grau de escolarização, boa parte dos jovens e adultos possui noções matemáticas. "É um saber nascido dos desafios mentais impostos pelo cotidiano. Muitos se esquecem de que essas pessoas conseguem dividir um salário mínimo de 415 reais pelos 30 dias do mês", provoca Stela (leia seqüência didática abaixo que utiliza o contracheque para reforçar o aprendizado da adição e da subtração).
Isso, claro, não significa que Matemática se aprenda apenas na base da intuição. "A construção do pensamento matemático exige conhecimento dos fundamentos da disciplina. Só assim os estudantes conseguem aceitar explicações e explicitar os próprios raciocínios", ressalta Priscila Monteiro, selecionadora do Prêmio Victor Civita Educador Nota 10. É preciso ter isso em mente no ensino dos quatro blocos em que a disciplina se organiza: medidas, geometria, introdução à estatística e números e operações. Mas é no momento de abordar o cálculo (um dos conteúdos de números e operações) que essa perspectiva se faz mais necessária.
Tido como um dos conteúdos mais valorizados no ensino de Matemática em EJA, o algoritmo (conta armada) é muitas vezes ensinado de forma mecânica. Mas, para que o aprendizado dessa técnica realmente faça sentido para os alunos, o ideal é começar o trabalho aprimorando os procedimentos mentais de resolução. "A partir daí, cada estudante deve construir o próprio percurso até os algoritmos, compreendendo de fato as propriedades da conta armada e reconhecendo quando é mais vantajoso usá-la", argumenta Priscila. É dos caminhos para conseguir esse avanço que esta reportagem trata.
Antes de mergulhar de cabeça em cálculos mentais ou escritos, vale investir um certo tempo investigando quanto a classe já sabe. Para apresentar a disciplina de forma natural e adaptada ao mundo adulto, o ajuste das propostas usadas na Educação "regular" é essencial. "O que faço com minhas turmas é começar com materiais reais em que os números estejam presentes, como encartes de ofertas de supermercado ou a tabela
de classificação do Campeonato Brasileiro", afirma Iara Silva Lucio, mestre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais e alfabetizadora de EJA na rede municipal de Belo Horizonte.
Um segundo conselho é evitar o "matematiquês". "Na vida real, ninguém 'efetua' nada, e 'operação' é de estômago ou de catarata", brinca Stela Piconez. Para evitar essa enrascada, abuse dos sinônimos. Por que não ler a questão dizendo "realize" e "faça a conta"?
O diagnóstico inicial também ajuda a identificar que conteúdos devem ser enfatizados antes do ensino dos algoritmos. Ao pedir que a turma escreva um número, podem-se encontrar, por exemplo, registros como este ao lado.
Essa escrita traz uma hipótese de pensamento apoiada na organização da numeração oral - ou seja, o número foi representado quase como se fala. O problema é que a escrita matemática funciona pela organização posicional, gerando uma contradição. "Em vez de recorrer ao método de riscar o jeito errado e fazer o aluno copiar o certo, o professor deve reconhecer que a hipótese tem lógica. Mas precisa explicar que, por não ser o jeito como todos escrevem, pode haver confusão: alguém pode ler trezentos mil, quinhentos e seis", afirma Iara.
Encontro de trajetórias
O que o professor provavelmente vai descobrir é um grupo heterogêneo, composto por pessoas de diferentes graus de escolaridade e habilidades matemáticas. Assim é a classe de 3º ano do Colégio Imaculada Conceição, em Belo Horizonte. Um dos alunos, o pedreiro Custódio Carreiro de Jesus, 59 anos, já sabia fazer cálculos mentais simples, mas não registrava as contas em papel. Num estágio mais próximo do convencional está sua colega Maria das Graças Gomes, 41 anos. Por ter concluído a 4ª série, a doméstica já possuía algum domínio da matemática formal. "Como sou vendedora autônoma de cosméticos, usava a conta armada para saber quanto as pessoas estavam me devendo. Mas não tinha muita segurança, principalmente nas contas de menos em que tinha de 'pedir emprestado'", relembra.
Alunos com níveis de conhecimento distintos representam uma oportunidade interessante: abre-se a porta para comparar estratégias de resolução. Aproveitando-se dessa saudável diferença, Alessandra Rodrigues de Paula, professora de Custódio e Maria das Graças, incentiva o trabalho em grupos, momento de debate de idéias para chegar a uma resposta. Depois, a fim de enfatizar a variedade de formas de solução, Alessandra coleta as hipóteses que surgem. Se a proposta for realizar uma multiplicação simples podem aparecer registros como este ao lado.
Aqui, o que o aluno fez foi escrever o caminho mental usado para resolver a situação, o reagrupamento de somas sucessivas. Ainda que não seja o algoritmo escolar, a capacidade de passar o pensamento para o caderno deve ser valorizada. "Podem aparecer outras formas que devem ser compreendidas conversando sobre o que está escrito e procurando identificar as propriedades matemáticas que apóiam o cálculo", diz Lucillo de Souza Junior, professor da rede municipal de Vila Velha, na Grande Vitória. Autor de um artigo sobre a apropriação dos códigos formais em Matemática, ele leva ao quadro as estratégias que surgem na classe. "O aluno percebe a validade de seu raciocínio e, ao mesmo tempo, toma contato com formas diferentes (e mais rápidas) de solucionar a questão."
Descobrir o saber
Com as estratégias lado a lado, o professor deve indicar as vantagens de cada método. No caso do algoritmo, sua força vem do fato de permitir a obtenção de um resultado independentemente dos números envolvidos - lembre que agrupamento, estimativa e outras táticas não servem para todas as ocasiões. Com o tempo, para aperfeiçoar a passagem do cálculo mental para a conta armada, é possível pedir ao estudante que tente reduzir o registro, aplicando soluções que economizem tempo.
No caso dos alunos da professora Alessandra, a receita tem dado um bom resultado. Maria das Graças não pede mais ajuda à filha da patroa para fazer subtrações. "Minha lista de dívidas está bem mais arrumada. Agora não perco dinheiro pela desorganização", orgulha-se. E o pedreiro Custódio já não precisa calcular quantas pedras de granito cabem num ambiente na base do olhômetro. "Faço as contas antes no caderno e compro sempre a quantidade correta de peças", comemora. A próxima aventura é o aprendizado da multiplicação. Com paciência e persistência, eles vão chegar lá.
Revista Nova Escola Edição 214 | 08/2008
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